19.9.08

A TIJUCA EM ESTADO BRUTO - III

Fascinante, quero confessar a vocês, falar sobre a Tijuca sob o prisma de seus personagens que dão cor, forma, cheiro, conteúdo e solidez ao bairro. O que eu chamo, vocês sabem, de Tijuca em estado bruto.

Sobre a Tijuca, muito já se disse. Meu caro amigo Aldir Blanc, por exemplo, disse, com muita propriedade, que a Tijuca não é um estado de espírito, é um estado de sítio. Alguém decretou que o tijucano pode sair da Tijuca, mas a Tijuca não sai, jamais, de dentro do tijucano.

Vejam vocês o caso de meus irmãos (serei discretíssimo para não devassar suas intimidades). Um está morando em Santa Teresa. Sua casa quase que não tem paredes; tem janelões de blindex que dão vista para a opulenta mata que verdeja aquele aprazível bairro carioca. E o que fez meu irmão com menos de uma semana na casa nova? Colou, nos janelões de blindex que o impressionaram (confessou-se impressionadíssimo, com a voz trêmula, no primeiro telefonema que me deu de lá), adesivos com o escudo do Vasco, adesivos da campanha do Roberto Dinamite para presidente do clube cruzmaltino e um, que é seu xodó, da PIER, loja que foi febre entre os tijucanos na década de 80. O outro mora na Barra da Tijuca em um condomínio novíssimo, luxuoso, com seguranças por toda a parte. Os prédios são sóbrios, os apartamentos têm varandas sóbrias, e assim, olhando de longe, você vê, de cara, qual o apartamento de meu irmão: na varanda, uma samambaia-chorona, planta-símbolo da Tijuca, rejeitada pelos decoradores da elite; sua toalha de banho, embora haja varal no apartamento, permanentemente secando pendurada na varanda; e um adesivo, bem no estilo Barra da Tijuca, grudado na janela da cozinha com visão para quem vê de fora: I LOVE TIJUCA. Uma beleza! Uma beleza! Deixemos meus irmãos de lado e vamos falar de mamãe.

Mamãe tem, vez por outra, crises de identidade. Fala mal da Tijuca, pragueja contra o bairro, esculhamba o modus vivendi do tijucano, reclama mais educação e polidez, mas não tem jeito... Mamãe é Tijuca da sola dos pés ao mais alto fio de cabelo, ambos (pés e cabelo) tratados à pão-de-ló num salão de beleza na Tijuca, é evidente. Notem a cena (só possível aos tijucanos).

Estou com mamãe, num desses últimos domingos, assistindo a uma palestra. A palestra corria já há uma hora e quinze minutos e mamãe roncava, de leve, com a cabeça deitada em meu ombro esquerdo. Roncava e eu percebia que uma velhinha, de longe, olhava sorrindo para nós. Eu pensava: está achando bonito esse carinho do filho com a mãe?; está achando engraçado ver minha mãe dormindo solenemente durante o esforço do palestrante?; será que ela conhece minha mãe?

A palestra chegou ao fim. Cutuquei mamãe, que disse ajeitando os óculos:

- Interessantésima a palestra, né, Dudu?

Disposto a não polemizar, nem respondi. E percebi a velhota vindo em nossa direção com o mesmo sorriso. Eu disse:

- Mãe, quem é essa velhinha que vem aí?

- Quem?

- Aquela, mãe! De saia azul de bolinha branca e camisa branca de bolinha azul!

- Ahhhhh! - disse, terna.

- Quem é?

- É a irmã do doutor Lauro...

- Irmã do doutor Lauro? - estranhei.

Chega-se a velhinha.

- Ô, Mariazinha! Há quanto tempo!

- É verdade, é verdade...

Mamãe se levantou, abraçou a velhinha e a velhinha disse:

- Esse é o seu filho mais velho? Eduardo, né?

E dirigindo-se a mim, ainda abraçada à minha mãe:

- Eu te vi desse tamaninho!!! - e pôs as mãos na altura do joelho.

Sorri.

Mamãe, ainda abraçada a ela, cochichou em minha direção:

- Não é a irmã do doutor Lauro!

Ficaram de frente uma para a outra.

- E como vai sua mãe? Saudade da Mathilde!

- Mamãe está ótima!

Mamãe tinha feições de preocupação. Certa de que não estava diante da irmã do doutor Lauro, parecia não saber o que perguntar. Foi vaga:

- Como vão todos?

- Bem...

Olhos de pânico, mamãe arriscou, genérica:

- E a filharada?

- Como?

- Hã? - mamãe, instintivamente mas sem nenhum efeito prático, deu-me um bico na altura da canela.

- O Leandro vai bem...

- Graças a Deus! - gritou mamãe com as mãos pro alto.

A velhinha sem entender muito bem o que se passava.

Os olhos de minha mãe pareciam uma máquina de caça-níquel. Ela buscava, nos recônditos da memória, o Leandro - e parecia não encontrar.

- E a senhora, está morando aonde?

A velha a desafiou:

- Você sabe quem eu sou, Mariazinha?

- Imagina! A senhora está quase me ofendendo! - e riu dando tapinhas nas costas da velhota.

Ficaram ali, conversando, e eu pedi licença pra ir ao banheiro. De dentro do banheiro, ao celular:

- Vó? Tudo bem? Escuta... quem é uma velhinha, amiga sua possivelmente, que me viu pequeno, que tem um filho chamado Leandro...

A memória de vovó, infalível:

- A Ana, meu filho! Da vila da Professor Gabizo! Vocês estão com ela?!

- Depois falo com você, vó! Um beijo.

Volto a elas.

A velhinha está dizendo:

- Mas, minha filha, não se trata de desconfiar... Mas é que eu estou com impressão de que você não está mesmo me reconhecendo!

Eu:

- Não seja injusta, dona Ana! Mamãe passou grande parte da palestra me contando sobre suas histórias, sobre o Leandro, sobre o tempo bom que foi aquele vivido naquela vila da Professor Gabizo...

Os olhos de dona Ana empoçaram.

- ... disse que seria emoção demais falar pessoalmente com a senhora depois de tantos anos!

Mamãe, teatral:

- Dona Ana!!!!! - e agarrou a velha.

Ficaram ali, abraçadas, e a velhinha disse:

- Ainda na Tijuca, minha filha?

- Ô! O que é que a senhora acha?

- E o filhão? Também?

- Ô! - repetiu mamãe.

Partimos para um lanche, eu e minha mãe, e rimos muito do encontro inusitado, de meu telefone para minha avó de dentro do banheiro, e das histórias - realmente divertidas - da dona Ana na vila da Professor Gabizo.

Até.

7 comentários:

Anônimo disse...

Tinha uma máxima na época em que estudava lá no Paulo de Frontin, que dizia que a Barra era povoada só por Tijucano emergente. "Tijucano quando ganha um dinheirinho, muda pra Barra", aquela coisa de bairrismo do pessoal de Ipanema, Leblon, Botafogo e Copa X Barra. Eu como sempre me dividi nas duas regiões e muito bem adaptada (fora a Barra , que essa não tem jeito de gostar) , curtia muito bem os dois lugares e me divertia bastante com os rompantes Tijucanos. Ô povo passional ....

Eduardo Goldenberg disse...

O tijucano não é passional, Monica. A paixão do tijucano pelo bairro vem, ao contrário, da racionalização de diversas análises que apontam, indubitavelmente, para essa verdade inapelável: não há lugar melhor para se viver, sobre a Terra, do que a Tijuca. Simples. Um abraço.

Anônimo disse...

Disque-vovó salvou a pátria, hein?

Eduardo Goldenberg disse...

Bemoreira: minha avó, 84 anos de lucidez vivíssima, é o repositório das memórias da família. Ela e seus cadernos de apontamentos, impressionantes pelo tamanho e pela quantidade de informações. Forte abraço.

Anônimo disse...

Lembrei de minha querida avó. A velhinha, nos últimos tempos, tem nos feito passar por situações inusitadas. Toda visita que chega em sua casa, ela recebe com quase silenciosos gritos de dor (não é nada paradoxal, é que sua voz já não é a mesma de 5 anos atrás). A visita pergunta: "Onde dói Dona Inês?" Sem cerimônia alguma, ela nos faz passar vergonha: "No cu" (assim mesmo).

Anônimo disse...

E se a dona Ana for leitora do seu blog??

Beijo

Eduardo Goldenberg disse...

Se a dona Ana for leitora do BUTECO ela chegará ao último parágrafo com algumas certezas:

01) mamãe é uma desmemoriada ou uma pessoa fraquíssima no que diz respeito a guardar fisionomias;

02) vovó, por sua vez, é um fenômeno nos mesmos quesitos;

03) eu sou um filho zeloso.

Beijo.