28.2.11

COMIDA DI BUTECO 2011 VEM AÍ

Eis que estamos às vésperas do Carnaval e, mantendo uma tradição já de muitos anos, o malfadado festival Comida di Buteco começa a pôr as mangas e a maionese de fora. E quem me lê sabe o quanto eu, desde sempre, sentei a borduna na iniciativa: basta uma clicada aqui e o Google abrirá diversas possibilidades para que você, que nunca leu nada meu a respeito do troço, entenda o porquê de minha aguda implicância com o projeto (escrevi "projeto" e tive ânsia de vômito). Mas vamos em frente.

Antes de continuar a escrever, dêem uma olhada no slogan (nova pausa para nova ânsia) do festival em 2011: 


Vou escrever para que o nojo emerja (leiam em voz alta e sintam a boçalidade da idéia): "Eu boteco, tu botecas, nós comida di buteco".

Em 28 de maio de 2010 escrevi uma carta aberta dirigida aos pilotos do trator de botequins, aqui. O fiz porque - a leitura do texto deixa isso claro - uma das organizadoras do negócio, Sra. Eulália, ligou-me indignada, no dia 13 de maio de 2010, com minhas críticas (todas sempre muito bem fundamentadas, modéstia à parte), ficou de marcar uma conversa olho no olho para que ela expusesse suas razões e nada aconteceu. Ou seja, agiu como agem quase todos os que são criticados: tratam de desqualificar o crítico, as críticas. Não suportam experimentar a não-adulação.

Este ano, em 2011, vai ser mais divertido expôr para vocês o quão maléfico é o festival que se orgulha disso que segue abaixo:

"Em 2008, o concurso entrou no conceituado Guia 4 Rodas (Editora Abril) e passou a ser realizado em diversas cidades do interior de Minas Gerais e em outros estados. Neste ano também, dois novos sócios se uniram ao projeto: Ronaldo Perri e Flávia Rocha, com a missão de expandir o conceito a outras praças."

Notem bem: o Comida di Buteco é um "conceito", e isso já diz muito sobre o nascedouro da idéia e seus objetivos.

"Os números atuais do Comida di Buteco impressionam, o evento está presente em 11 cidades e, só em Belo Horizonte, o público participante é estimado em cerca de 800 mil pessoas por edição, com mais de 160 mil votos nos pratos participantes (Vox Populi / 2010)."

Os números do Big Brother Brasil, o maior lixo da recente história da TV brasileira, também impressionam.

"A festa "A Saideira" – que tradicionalmente marca o encerramento e a premiação do concurso – se tornou um dos eventos mais esperados da cidade e recebe mais de 26.500 botequeiros nos dias em que é realizado."

A festa "A Saideira", no ano passado, trouxe o Bob´s para servir os otários que conjugam o verbo proposto pelo festival em 2011.

"O Comida di Buteco se tornou também um fenômeno de comunicação. Em 2010, a mídia espontânea do projeto superou o valor de 16 milhões de reais, tendo o Comida di Buteco figurado nos principais veículos da mídia nacional e importantes publicações internacionais, como o NYTimes e La Nacion."

Basta, não?

Afinal de contas, buteco e New York Times, buteco e La Nación, têm tudo a ver...

Seria cômico se não fosse trágico.

Volto - é claro - ao tema.

Até.

24.2.11

AINDA SOBRE A DEMONSTRAÇÃO DE LENINISMO

Ontem, aqui, escrevi sobre o choque que senti, ontem mesmo, ao ouvir um jovem comunista dizer, ao telefone, para seu interlocutor (ou interlocutora, ele só dizia "cara" ao se dirigir ao pobre-diabo de outro lado da linha):

- Cara, ela ontem deu uma demonstração de leninismo impressionante!

Pedi a opinião de meus poucos mas fiéis leitores a fim de que eu pudesse, eu que sou um beócio de antolhos nas questões vermelhas, compreender que diabos era aquilo. Fui pouquíssimo atendido, eis que apenas três leitores se dispuseram a me prestar auxílio (sou, e isso me dói, um fracasso de audiência). Mas dentre os três, e sem depreciar um deles (que apenas corroborou o comentário esclarecedor do primeiro), dois monstros por quem guardo intenso e agudo respeito: o jornalista velho-de-guerra, com passagem por todos os grandes jornais do Brasil, meu dileto amigo, José Sergio Rocha, e meu irmão de fé, historiador e brasileiro máximo, Luiz Antonio Simas (recomendo vivamente a leitura de seus comentários).

Ocorre que quero lhes contar outra coisa.

Uma comunista (e não lhe direi jamais o nome, nem à fórceps) escreveu-me ontem sobre o ocorrido - eis um fato espantoso! Dizia, ela também assombrada, que lera - confessou-se minha leitora contumaz - meu texto e que se reconhecera. Disse - e eu cheguei a me coçar enquanto lia - que foi pra ela o telefonema do jovem comunista infestado de lêndeas. E passou a me explicar - pobre coitada - o que havia sido a tal "demonstração de leninismo". Tirem as crianças da sala antes de seguirem em frente.

Em apertada síntese para que a náusea seja pouca (tudo o que estiver entre aspas terá sido integralmente copiado de seu e-mail): disse-me a jovem, também comunista, que havia uma "manifestação" em determinada universidade. E que ela, e mais alguns "quadros da base do partido", por absoluto acaso, estavam também na tal universidade. Segundo ela a "manifestação" não contava com mais do que 10, 15 "manifestantes". Foi quando, então, ela e seus amigos (os tais "quadros da base do partido"), passaram a "intervir" na tal "manifestação" (e ela não me contou do que se tratava a "manifestação").

Segue o relato: em poucos minutos, mais de 500 alunos desceram, como ratos, das escadarias da universidade ("uma coisa linda", disse-me a utópica). Os "quadros da base do partido", então, diante do êxito numérico da assistência, "injetaram forte teor político e orgânico à manifestação".

Ela valeu-se da expressão "foi uma coisa linda" muitas vezes!

E eis o que eu preciso lhes dizer sobre isso...

Vejam como caminha nossa juventude vermelha! O jovem das lêndeas encantou-se com o que ele chamou de "manifestação de leninismo". A jovem rubriplúmea, então, explicou-me (ou tentou explicar) o que havia acontecido na "universidade" - o que seria, afinal, a tal "demonstração de leninismo".

Não entendi patavina!

O que pude concluir do que li, foi o seguinte: a ala "jovem" do PCdoB (formada, quero crer, pelos "quadros de base") faz um tremendo sucesso entre a juventude brasileira. Afinal, convenhamos, transformar uma fila-indiana de 10, 15 pessoas, numa turba de 500, não é pra qualquer um. O que me fez lembrar do PSOL, claro, uma de minhas obsessões que trago no bolso do paletó: sexta-feira após sexta-feira estão lá, em torno do caixote de madeira que cumpre o papel de palanque no Buraco do Lume para os debates políticos do partido (eles não usam palanques e nem fazem comícios, apenas promovem debates), não mais do que 5, 10 quadros do partido.

Aulas de "demonstração de leninismo", é disso que o PSOL precisa.

Até.

23.2.11

DEMONSTRAÇÃO DE LENINISMO

Em mais de uma oportunidade vali-me, aqui, diante de vocês, da seguinte imagem (hoje serei mais detalhista): vou ao espelho, todas as manhãs, e verifico, com certa dose de autocomiseração, o quão próximo da múmia eu estou. Sim, da múmia. Sinto-me velho, caquético, cada vez mais distante da juventude com a qual esbarro nas minhas idas e vindas e cada vez mais admirado com a sapiência de Nelson Rodrigues que, sempre que indagado a respeito de um conselho para os jovens, dizia:

- Envelheçam!

Vou explicar o porquê de voltar ao tema: hoje cedo, a caminho do trabalho, sentei-me ao lado de um jovem. Não fosse a camiseta do PCdoB e eu juraria estar dividindo o banco do coletivo com um membro do PSOL. Escrevi "membro" mas queria mesmo era dizer "quadro", o PSOL não tem filiados, não tem simpatizantes, o PSOL tem quadros. Vamos em frente, com a descrição do jovem.

O jovem era metade cabelo. E com lêndeas que saltavam à vista de todos, como golfinhos na Baía de Guanabara de priscas eras. A camisa vermelhíssima do PCdoB, uma bermuda jeans que me pareceu rasgada de propósito e chinelos. Assim que me sentei estrilou o celular do jovem. Não era um toque qualquer, um trinado, era o Hino da Une, de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes. Foi efusivo, o jovem:

- Fala, companheiro!

Muitas gírias, muitas vezes mencionada a palavra "ocupação", "atividade", até que houve a frase que me fez quicar na poltrona do lotação:

- Cara, ela ontem deu uma demonstração de leninismo impressionante!

Levantei-me, estava próximo o ponto. E saltei do ônibus carregando nos ombros o peso da mais absoluta ignorância.

Atravessei a Nilo Peçanha e fui ao balcão do café Capital, na passagem para a Erasmo Braga. Dona Luiza serviu-me o café de todos os dias, viu-me mexendo o café num exercício de pura obsessão (não uso açúcar e nem adoçante), batendo a colherinha no pires e disse, observadora:

- Aconteceu alguma coisa, doutor?

Fiz que não com a cabeça.

Fiquei ali - o quê?! - uns 5 minutos com cara de parvo. O quê seria, meu Deus?!, uma "demonstração de leninismo"?

São 18h10min, e estou aqui fazendo este tolíssimo relato com o intuito único e talvez egoísta de buscar ajuda. O que é uma "demonstração de leninismo"?

Quem puder me dar uma pista, por favor, deixe um comentário ou me envie um e-mail.

Serei, prometo, eternamente grato.

Até.    

14.2.11

DEVASSANDO A VIDA DO BALOFO

Arrumei mais sarna pra me coçar. Desde hoje estou respondendo às perguntas de quem me lê através deste endereço, aqui.

BAR DA BOA, NA LAPA, RJ

ESTE TEXTO AGORA PODE SER LIDO AQUI.

8.2.11

HOJE É DIA DE MARIANA BLANC

Hoje é dia de Mariana Blanc, minha comadre de fato e de direito, a quem carinhosamente chamo de Greta Garbo da Tijuca - nasceu pra ser estrela e guarda mistérios insondáveis por trás dos olhos ligeiramente estrábicos que ela, sempre muito elegante, prefere dizer que são como são por conta da presbiopia. Filha mais velha de um grande amigo, um ídolo, um de meus orixás vivos, é mãe da dona dos cílios mais lindos que meus olhos com ptose (também tenho minhas manias, pô!) jamais viram. Foi a ela - "Pra Mariana" - que Aldir dedicou seu "Rua dos Artistas e Arredores", de 1978. E a ela - "Pra Mariana, de novo" - também que dedicou "Porta de Tinturaria", de 1981, duas obras-primas das letras cariocas - como ela, de certo modo.

Devo à Mariana, mais que a Milena, minha afilhada mais velha, o suporte de minhas noites de terror entre março e junho (algo asssim) de 1999, quando o Capela me assistia perdido em busca do norte depois de uma turbulenta separação. O que não deixa de ser irônico. Ela, furiosa que só ela, piscando aqueles olhos estrábicos (são estrábicos, pô!) e me acalmando com sua doçura indizível que poucos vêem (porque ela, sábia, pouco mostra de sua doçura).

Teve Milena cedo, ainda moça, e a Milena é o retrato e o atestado da grandeza de minha comadre. Minha menina não se cansa de dizer - ontem mesmo disse! - o quanto é impressionante a doçura da moça dos cílios mais lindos - e é assim porque foi gerada, criada, mimada, educada e protegida pela minha comadre.

A Mariana é branca e samba feito preta. Mora na Tijuca e é uma vizinha de subúrbio. Adora, por diletantismo, uma grossa pancadaria - puro teatro. Prefere dizer que bebe "breja" - cerveja todo mundo bebe. Manda "bicos" em vez de "beijos" - comum demais. Emite sinais, permanentes, de seus dotes, de seus motes, e o que já apanhou da vida - como apanhamos todos nós - não é brinquedo. Escreve que é uma beleza - seu blog, aqui - e ler o que minha comadre escreve é como ler a bula do que lhe vai na alma.

Nesses mais de 20 anos de convívio já perdemos amigos a quem considerávamos irmãos. Dividimos as dores - Marco Aurélio e Fernando Toledo ainda doem - mas fomos sempre capazes de, seguindo a lição de seu pai, erguer nosso copo ao humor. Cantamos juntos, formamos uma dupla fadada ao fracasso, mas somos um sucesso nas mesas de botequim que, vez por outra, dividimos por aí.

Pois na manhã desse 08 de fevereiro, diante da xícara de café preto (como a alma de minha comadre, preta como a mais preta baiana do nosso Salgueiro), ergo bem alto o copo imaginário da "breja" mais gelada em sua homenagem. Mirando os olhos da menina nos ombros do pai, crava-se em mim uma certeza: são, até hoje, os mesmos olhos. Os mesmos olhos que, sombreados na fotografia, escondem o estrabismo (é estrabismo, pô!). Só não escondem - muito pelo contrário - a gaiatice da mulher que faz anos hoje. São os mesmos olhos. E o mesmo sorriso, diga-se.

Beijo, minha comadre. Amo você.   


Até.

4.2.11

O EDSON - CONFISSÕES

Esse exercício que faço constantemente aqui no blog, de voltar ao passado pelas espirais da memória, me é duríssimo - e explico. Em primeiro lugar porque ele me joga na cara o peso de meus 41, quase 42 anos: é cada vez mais doído voltar à infância, cada vez mais emocionante reviver os cenários e os personagens que compõem minhas histórias. Em segundo lugar porque os efeitos colaterais do arremesso ao passado são muitos e difíceis de administrar: dá-me como se fora uma epidemia, e eu começo a acreditar (eis um prato cheio para um psicanalista) de verdade que estão todos vivos, que ainda uso calças curtas, camisa de listras e mais um sem fim de pequenos problemas. Vamos em frente.

Eu não sei se vocês repararam, mas quando escrevi o texto do dia 02 de fevereiro - aqui - citei, de passagem, o nome de uma das professoras de mamãe. Pois seu nome ficou ecoando em torno de mim e eis que saltou, num átimo, também diante de mim, o Edson. Eu acabo de escrever "Edson" e já começo a rir. O Edson, que foi padrinho de casamento de meus pais - meu Deus, o Edson ainda está vivo? Não sei. - foi protagonista, ao longo da vida, das mais inacreditáveis histórias que eu jamais ouvi. Era sempre assim: papai chegava do trabalho. Mamãe, ainda da cozinha:

- Meudi, sabe a última do Edson? - Meudi é como mamãe chama o papai.

E ele, excitado, largando a pasta sobre a mesa:

- Conta, conta, conta!

Não quero mais lhes contar do Edson. Vou lhes contar sobre meu pai - ele é um personagem e tanto. O Edson fica para outra altura.

Vocês todos que me lêem sabem que vovó, mãe de mamãe, morreu em dezembro - lhes contei aqui. O que quero lhes contar aconteceu durante o período em que vovó ficou hospitalizada. Vamos porém, antes, a alguns detalhes.

Papai é um homenzarrão, altíssimo, forte, e ainda assim é um poltrão olímpico. Não pode ver sangue, que desmaia. Não agüenta visitar ninguém no hospital - e a palavra "hospital" já lhe dá náuseas. Não suporta - por fobia - os trancos mais violentos, digamos assim. Mamãe, por quem papai é completamente apaixonado, vive cercada de cuidados por parte do velho, e sabendo disso vamos em frente.

É evidente que papai não foi, dia nenhum, visitar vovó. Ia, diga-se, até o corredor do quarto fazendo companhia para mamãe. Mas não entrava. Vovó, uma mulher iluminadíssima e compreensível, disse, dia após dia (foram poucos, graças aos deuses), a mamãe:

- Tadinho do Isaac, eu sei que ele não suporta hospital.

Quando eu entrava, mudava pouco:

- Tadinho do seu pai, eu sei que ele não suporta hospital.

Pois bem. Vovó não estava bem, tínhamos pouco tempo para a visita, e decidimos sair para almoçar no primeiro dia em que as notícias não foram muito boas - eu, papai e mamãe.

À mesa, já mais relaxados, papai disse:

- Minha filha... - o "minha filha" era a certeza de que vinha emoção pelo caminho.

Alisando as mãos de mamãe, olhos ligeiramente marejados, ele soltou o petardo:

- ... você não se preocupe, viu? No dia em que sua mãe... é... no dia em que sua mãe... hum... Minha filha, no dia em que sua mãe bater as botas, eu cuido de tu...

Quando ele pronunciou "bater as botas" eu e mamãe explodimos numa gargalhada que o deixou constrangido. Éramos nós, mãe e filho, diante daquele gigante tentando fazer poesia. Mudamos o rumo da prosa e deu-se o mesmo roteiro no dia seguinte.

Ele pediu sua dose de Red Label, pigarreou, piscou os olhos numa velocidade absurda - outro sinal de que lá vinha emoção - e disse, com as mãos de mamãe entre as suas:

- Minha filha, eu já te disse... Quando sua mãe... é... Bem... Quando sua mãe... Minha filha, quando sua mãe descansar em definitivo...

Outra explosão. O mesmo constrangimento. Mudamos o rumo da prosa e deu-se tudo como dantes no dia do terceiro almoço. Papai, escolado pelas falas dos dias anteriores, inspirou muito fundo, pôs as mãos nas orelhas da mamãe, diante dele, e disse, de sopetão (ali eu tive a certeza de que ele ensaiara a nova performance):

- Minha filha, quando sua mãe atravessar para o outro lado...

Não conseguiu, pela terceira vez, completar a frase. Nesse dia ele reagiu. Explodiu:

- Vocês querem que eu fale o quê?! Quando ela morrer?!

Eu e mamãe rolando no chão do restaurante.

Passaram-se mais uns dias e eis que vovó foi oló.

Coisa de umas semanas depois fomos todos jantar na casa de meus pais - eu e meus irmãos.

E durante o jantar, o momento solene depois de um pigarro circunspecto de meu pai:

- Gente... Tenho uma coisa pra contar pra vocês...

Houve um burburinho de risos contidos. Minutos antes, abrindo os trabalhos à mesa, mamãe havia proposto um brinde à memória de vovó, estávamos todos emocionados. E meu pai, sério:

- Prrrrr...

Pequena pausa. "Prrrrr" é o som que ele emite quando quer dizer "porra". Mas como papai não fala palavrão na frente de mamãe, sai "prrrrr" mesmo.

Voltando.

Ele disse:

- Prrrrr... Como se não bastasse a morte da dona Mathilde...

Houve um entrelaçar alucinante de olhos. O que vem por aí?, era a pergunta em neon na testa de cada um à mesa.

- Eu perdi a eleição ontem. Não fui reeleito síndico... - disse, sorumbático.

Deu-se uma explosão de risos, soquinhos sobre a mesa, uivos de tanto que se ria, e papai ali, tadinho, achando que ninguém compartilhava sua decepção com a derrota da véspera.

Até. 

3.2.11

ARREMESSO AO PASSADO - MAIS CONFISSÕES

Desde anteontem que estou para lhes contar sobre as expressões que minha bisavó usava e que tanto marcaram minha infância. Era minha intenção fazê-lo quando comecei a escrever no dia primeiro - aqui - mas fui sendo sugado pelo ciclone da memória e acabei contando a história de meu encontro com Adele Fátima mais de 30 anos depois de tê-la visto, arrebatadora, nas páginas de uma revista Amiga que encontrei na casa de meus avós - quando eu era um menino de calças curtas, camisa de listras e conheci os encantos da quiromania. Ontem, dia de festa no mar - aqui - mais uma vez não consegui. Fui enredado pelos encantos de Janaína e me perdi nas profundezas das emoções que me moldaram. Vamos a elas, hoje. Estou, confesso, excitadíssimo com a possibilidade de lhes contar sobre isso, muito mais - é evidente - por conta do que isso provoca em mim do que pelo simples agrado a cada um dos meus poucos mas féis leitores. Não são expressões, exatamente, mas isso é o que menos importa.

Minha bisavó morava numa vila - isso eu já lhes disse. Morava com meus avós e com sua irmã, tia Idinha. Ela passava - se é ou não a verdade, nada interessa, vale o que tenho em mim - grande parte do dia na janela. Bastava passar uma gostosa (dou-me conta, hoje muito mais, do quanto eram gostosas algumas das moças que iam e vinham) e ela dizia em direção à irmã:

- Lá vem aquela sirigaita.

E eu lhes pergunto: quem ainda usa a palavra "sirigaita"?

Vem a cena à minha mente: minha bisavó e sua irmã usavam leque (ninguém mais usa leque). Podia estar quente, chovendo, um frio dos diabos, lá estavam as duas de rede no cabelo e leque numa das mãos. O leque gerava uma série de códigos que eu ia pescando aos poucos. A situação era grave? Fechava-se o leque num átimo de segundo e dava-se uma pancadinha na palma da outra mão. Fofocavam as duas? O abanar era frenético.

E as refeições?

Vovó tinha uma mesa muito antiga, dessas que têm a possibilidade de serem abertas no meio. De dentro da fenda aberta saltava outro tanto de madeira e a mesa crescia. Pois se havia balbúrdia à mesa - e sempre havia balbúrdia à mesa - vinha o grito:

- Silêncio no tribunal! Silêncio no tribunal!

Acaba de me ocorrer que talvez, por isso, eu tenha seguido a carreira de advogado.

Noutras ocasiões, a blague era diferente:

- Calma no Brasil!

E tia Idinha completava, ensaiadíssima:

- ... que a Europa está em guerra!

Minha bisavó não me dava bronca, não me dava esporro: os verbos conjugados eram outros.

- Vou ser obrigada a ralhar contigo!

Ou então:

- Vou te passar um pito, menino!

Eis uma das provas de meu evidente desequilíbrio: estou aqui escrevendo e ouço, com direito a eco, a voz da minha bisavó.

Dona Mathilde, minha bisavó, era torcedora do Botafogo. Mantinha na cozinha de casa um escudo com a estrela solitária desenhada com palitos de fósforo. Era dia de jogo do Botafogo. Se caía num domingo, lá estava também o tio Hique (que recebia o caboclo Tupiara, como lhes contei ontem), botafoguense também. E o jogo era ouvido no radinho de pilha. Gol contra o Botafogo? Ela era implacável:

- Papagaio!

Pois bem: deu-se em mim a guinada do tempo, o arremesso violento em direção ao passado e quero lhes contar uma das mais inacreditáveis histórias envolvendo a família (as expressões de minha bisavó foram apenas o pavimento pra que eu voltasse pra bem longe). Omitirei os nomes, todos trocados. Mas a história é 100% verdadeira e parte do anedotário coletivo dos Monteiro de Barros, dos Montenegro Braga, dos Goldenberg, todos unidos pela mágica da vida.

Angelina tinha uma irmã surda-muda. Ativíssima, ativíssima! Tinha, é verdade, muitos outros irmãos, e como Paulina - a surda-muda - era uma pedra no sapato, vivia sendo arremessada pra lá e pra cá. Passava uma semana na casa de um irmão diferente. Dava-se o rodízio. O troço era sempre assim: chegava na casa de um no domingo à noite e lá ficava até o domingo seguinte. E quando chegava o domingo seguinte era uma festa:

- Graças a Deus! Paulina agora só daqui a um mês e meio!

Pois num certo domingo desembarcou a Paulina na casa de Angelina. O domingo já foi um inferno. Na segunda-feira pela manhã - a casa estava em obras e Angelina não contou com a compreensão de nenhum dos irmãos - "sai pra lá, segura que a batata é tua!" - a surda-muda acordou perto do meio-dia. E acordou, como se diz, com a macaca. "Mmmmmmmmmm" pra cá, "mmmmmmmmmm" pra lá, aqueles gestos que ninguém fazia muita questão de entender e a paciência de Angelina no limite.

Foi quando teve a idéia que reputou brilhante.

Chegou-se pro pintor, um homem de meia-idade, e foi franca, sincera, direta:

- O senhor pode me fazer um favor?

- Pois não, dona Angelina. Pode dizer.

- Será que o senhor se importa de comer a minha irmã? Ela está impossível!

E esfregando as mãos, com os olhos semi-cerrados, completou o assédio:

- Dá um sossega-leão nela, dá? Passa-lhe o rodo! Crava esse pincel nela! - e deu de gargalhar feito uma louca, dando tapinhas no ombro do pobre-diabo.

Seu Onofre, o pintor, não achou má-idéia. Já havia comentado com o eletricista que a surda-muda "dá um caldo".

Angelina saiu pra almoçar piscando o olho em direção ao seu Onofre:

- Conto com o senhor, hein! E prometo uma gorjeta gorda se o senhor acalmar a Paulina!

Horas depois voltou pra casa.

Seu Onofre, em pé na escada, fez que "sim" com a cabeça. E ela, aflita:

- Cadê ela? Cadê?

Ele apontou pro corredor e disse lixando a parede:

- No quarto. Dormindo. Parece morta.

Lá estava Paulina. Dormia - esse detalhe é importante - com um sorriso nos lábios. Braços abertos, pernas à vontade, e assim ficou até umas sete da noite. Jantou em silêncio, o sorriso fixo nos lábios, como uma máscara. E foi assim até o domingo seguinte, quando foi despachada para a casa de outro irmão.

Vamos ao final da bulha (outra expressão de minha bisavó).

Nove meses depois nasceu um menino saudabilíssimo, vendo, ouvindo e falando.

Investiga daqui, investiga dali, chegou-se à verdade dos fatos.

Paulina hoje mora com Angelina - os irmãos não perdoaram a irmã por conta da insanidade - e com Roberto Carlos, o filho do pintor.

Na escola, em tenra idade, o menino contou, é claro, a história pros amiguinhos de classe (sabem como é criança...).

O duro mesmo é o apelido que ele carrega até hoje, já burro velho: Suvinil.

Até.

2.2.11

DIA DOIS DE FEVEREIRO - PEQUENAS CONFISSÕES

Eu acho que já lhes contei isso algumas vezes, mas como sou um homem obsessivo, orgulhoso de minhas idéias fixas, não me importo de lhes contar mais uma vez, tudo de novo (acho que dessa vez com mais detalhes). É que hoje é dia dois de fevereiro, dia de festa no mar, e nesse dia - sempre! - quero ser o primeiro a salvar Iemanjá (apud Dorival Caymmi). E é isso - o por quê disso - que quero lhes contar hoje.

Sou o filho mais velho de um casal tijucaníssimo, da sola dos sapatos ao ponto mais alto da cabeça. Responsáveis diretos pelo barro que me molda, é a eles que atribuo o que tenho de bom. O que tenho de ruim, bem, devo à tumultuada trajetória pela qual passa todo ser humano: e só os canalhas mais sórdidos são inteiramente bons - se é que me faço entender. Um casal tijucaníssimo mesmo, inclusive se tomarmos os estereótipos como parâmetros. Ela, torcedora do America, ex-aluna do Instituto de Educação, na rua Mariz e Barros, salgueirense, normalista, recitava quando menina - foi aluna de sua madrinha, Dalila Geraldo. Ele, vascaíno, ex-aluno do Instituto La-Fayette, na rua Haddock Lobo, freqüentava o Divino, na esquina da mesma Haddock Lobo com Matoso, e a Petrobras foi seu único emprego. Avô materno rubro-negro, ex-servidor do DNER, nunca mais foi ao Maracanã depois da tragédia de 1950. Avó materna, dona-de-casa, vendedora da Avon, da Jafra, eles também moradores da Tijuca. Avô paterno vascaíno, romeno ou russo (nunca se soube ao certo), chegou ao Brasil fugindo de Odessa, trabalhou com vendas a vida inteira, casado com minha avó paterna, ambos judeus, também tijucanos. Vovô Milton, católico não-praticante. Vovó Mathilde, católica até certa altura e espírita convicta a partir de meados dos anos 50. Vovô Oizer freqüentava a sinagoga e reunia-se, todas as tardes, com velhinhos judeus na praça Afonso Pena, quando gastava o verbo, em ídiche. Vovó Elisa, judia. Quando morreu, numa casa de repouso destinada às damas israelitas, descobrimos que freqüentava um centro espírita, às escondidas, na Praça da Bandeira, com a anuência das enfermeiras que acobertavam seus passeios pelas aléias de Kardec.

Papai nunca gostou de judeus - a razão é o menos importante. Sentia-se fora d´água entre os que diziam "seus". Apaixonou-se por mamãe, uma goy, e encantou-se pela umbanda quando viu tio Hique, irmão de vovó Mathilde, recebendo o caboclo Tupiara numa sessão, na Tijuca. Disse-lhe o caboclo, dando-lhe tapas muito firmes no peito:

- Ainda vamos trabalhar juntos, filho!

Anos depois, papai saiu dançando, sem mais nem menos, riscando ponto no tapete arrancado com fúria com os próprios pés, dentro de casa: era o caboclo Tupinambá, camarada de Tupiara, o mesmo que no dia 26 de abril de 1969 apareceu pra ele, na cabeceira da cama, avisando que eu, esperado para o final de maio, chegaria no dia seguinte. Como de fato cheguei. Mamãe nasceu com vovó já espírita, foi presidente da Juventude Espírita do Rio de Janeiro, inclusive, mas rendeu-se também aos encantos do caboclo e dos tambores. Ele só a chama de "formosa". E ela recebeu avisos também, em forma de sonhos recorrentes, durante a gravidez, como lhes contei aqui, em 02 de fevereiro do ano passado:

"Consta que mamãe, grávida de mim, seu filho mais velho, tinha um sonho recorrente. Na praia, na areia, diante do mar revolto, mamãe chorava angustiada olhando pro mais alto, onde nuvens carregadas davam cores mais trágicas a seu medo e seu temor. Das águas do mar, emergia uma moça bonita, com olhos doces e feição amorosa, trazendo uma criança no colo que era oferecida à minha mãe. Mamãe chorava - e chorava muito. Negava o presente das águas, e a moça bonita mantinha os braços estendidos em sua direção com expressão ligeiramente autoritária e impositiva. Passado um tempo, rendida à insistência daquela mulher, mamãe caminhava pro mar. E quando seus pés tocavam a espuma das ondas que arrebentavam na areia, o céu se abria, o mar acalmava e a moça desaparecia nas profundezas das águas. Era quando mamãe me punha no colo, os olhos lavados de lágrimas e maresia. Hoje, dia de festa no mar, dia de Yemanjá, dedico à minha mãe minha mais profunda gratidão por ter me criado como me criou. Agradeço aos deuses que me emocionam a cada dia mais pelo fato de eu ter vindo ao mundo através dela, a mais doce das mulheres, rigorosa, impetuosa, generosa acima de tudo, imagem e semelhança da moça do mar."

Nesse caldeirão, vim ao mundo.

De nada me lembro do que contam meus pais, do que contava minha avó: eu, em tenra idade, tinha diálogos intermináveis com o mar. Não havia pai, mãe, avó, não havia santo ou demônio que me tirasse da beira d´água quando eu ia à praia. Gritava palavras ininteligíveis, brandia os braços, fazia saltar as veias do pescoço, e invariavelmente só voltava pra barraca, com um sorriso no rosto, depois de encerrado o bate-papo com o invisível. E em casa, era comum a cena:

- Dudu? Vem, filho. Tá na mesa.

- Péra. Tô brincando de arco-e-flecha com os índios.

Passei grande parte da infância no clube Monte Sinai, clube tijucano que ficava ao lado do prédio em que morávamos. Namorei uma judia e quase fui fuzilado por meu pai. A primeira mulher que conheci biblicamente era uma mulata, e justo em Volta Redonda, durante um torneio de natação, a mesma terra que viu nascer a mulher que me ensinou a sorrir, minha menina. Tenho dezenas de Bar-Mitzvah no currículo, recito trechos inteiros da Torá, de cabeça (para desespero de meu velho), me amarro em conversar com Tupinambá quando ele baixa no terreiro de papai, tenho vaga lembrança das idéias que troquei com Tupiara na pele de meu tio Hique, não perco por nada a missa no dia de São Sebastião, no dia de São Jorge, no dia de São Judas Tadeu, virei devoto de São Peregrino, tomo remédios fitoterápicos recomendados pelo espírito de um médico curitibano, gosto de tomar passe em centro espírita, fico impactado e emocionado num terreiro de candomblé, travo a garganta com os tambores e os cantos da umbanda e já conversei com preto velho, com seu Zé, com Maria Padilha, com o povo da rua. Minha religião, definitivamente, é o Brasil.

Jogar flores no mar no dia 31 de dezembro é um ritual que acompanho desde que nasci. Papai, quando morava com eles, saía de casa antes das seis da manhã carregando maços e maços de palmas brancas. Sempre na Praia Vermelha, na Urca, e ele sempre me mostrava o morro que, visto do calçadão, se parece com o perfil de um índio velho. Eu o imitava, cheio de orgulho. Ia ao mar, molhava os pés, entrava um pouquinho na água com as palmas nas mãos, dizia uma coisa ou outra, conversava com Iemanjá e fazia minha oferenda na expectativa de que fosse bem aceita.

De uns anos pra cá, me foi dito que sou filho de Ogum. Ganhei das mãos generosas de Luiz Antonio Simas seu ileke de contas vermelhas, pretas e azuis. Somos filhos do mesmo pai. E Exu sopra, diuturnamente, no meu ouvido - fui duas vezes consultar Ifá, e foi batata. Depois, o mesmo Simas deu-me um de seus tesouros (entregou-me, comovidíssimo, no dia de meus 40 anos): a imagem de São Jorge Guerreiro, meu pai Ogum, que guardava o congá do terreiro de xambá comandado por sua avó - e que hoje guarda minha casa. Há anos que vou ao mar no dia dois de fevereiro. Ninguém mandou, ninguém pediu, ninguém sequer me sugeriu. Vou - simplesmente.

Como fui hoje. Pra rezar, pra cantar baixinho, pra render minhas homenagens.


Axé.

1.2.11

EXPRESSÕES DE MINHA BISAVÓ

Minha bisavó, minha saudosa bisavó - e como já falei sobre ela aqui - era uma mulher que trazia no bolso do vestido uma enciclopédia de expressões que marcaram, como a marca do ferro em brasa, minha infância. E minha bisavó vive, pra mim, em três cenários: na primeira vila que conheci, na Professor Gabizo, perto da Heitor Beltrão; depois, na vila da São Francisco Xavier, entre o Orsina da Fonseca e a Igreja de São Francisco Xavier do Engenho Velho; e por último, no Lins, seu último endereço. As lembranças da primeira vila são vagas, muito vagas, e dela guardo esparsas passagens. Uma me marcou tremendamente e seria, tenho certeza, prato cheio para um psicanalista. Tinha eu - o quê? - não mais do que cinco anos de idade. Mamãe tinha uma empregada, creio que minha babá (o nome, não lembro). Pois a preta um dia me pôs, certo dia, diante da TV. Na tela, aquelas listras coloridas na horizontal, expediente usado durante anos pelas TVs antes ou após a programação regular. Eu devia estar pintando e bordando, é o que penso hoje. Disse-me a babá:

- Dudu, senta aqui! - e apontou-me o sofá.

Sempre fui obediente.

Mostrou-me a telinha e disse:

- Olha a cortina do circo, olha! Já, já, vão levantar a cortina. E você vai ver palhaços, engolidores de fogo, elefantes, leões...

Lembro-me vagamente desse dia. Mas uma certeza me assola: esperei durante horas pelo circo que, é claro, não veio. E a preta retinta, dulcíssima:

- O adestrador está atrasado. Espere! Espere!

E o palhaço era eu.

Da casa da vila da São Francisco Xavier as memórias são mais sólidas, palpáveis, o cheiro daquela casa, daquela vila, tudo está vivíssimo em mim. Foi ali, e eu nem sei quantos anos tinha, que pus álcool na boca pela primeira vez. Moravam ali minha avó, meu avô, minha bisavó e sua irmã, tia Idinha. Vovô mantinha um bar suntuoso na sala e eu sempre me encantava com a licoreira de cristal verde: era licor de menta. Diversas vezes, quando sozinho, mandava um cálice pra dentro. Era pastilha Garoto líquida! Ali, também, conheci a quiromania. Folheando uma revista AMIGA deparei-me com uma foto da Adele Fátima vestindo um biquini amarelo. Senti uma novidade entre as pernas e uma aguda vontade de ficar escondido. Voei pro banheiro de azulejos amarelos e saí de lá vendo estrelas: a vida mudou dali em diante. Anos depois, muitos anos depois - desconfio que eu já tenha lhes contado essa história aqui - encontrei Adele Fátima, por acaso, infelizmente, num restaurante no Leblon. Corria o ano de 1999 e eu estava saindo da estréia do espetáculo ALDIR BLANC, UM CARA BACANA, no Teatro da Lagoa. Para piorar - no melhor dos sentidos - eu estava na companhia do bardo tijucano. Aldir, que sabia da história, disse-me comovido:

- Ah, mas você não pode perder essa oportunidade...

Depois de algumas doses de Jack Daniel´s, ele voltou à carga:

- Vai lá, vai lá!

Fui.

Aproximei-me dela. A cada passo, um retrocesso no tempo. A cada passo, a transformação. E quando me cheguei ela já estava de biquini amarelo:

- Com licença...

O sorriso mais absurdo de tão bonito, um arremesso agudo em direção ao passado, a voz que eu NUNCA (com a ênfase szegeriana) vou esquecer:

- Pois não, querido...

- Eu preciso te contar uma coisa...

Outro sorriso, Aldir batia palmas da mesa, pus sua mão entre as minhas e disse (o agudo do vexame é que brotavam lágrimas de um menino de tenra idade dos meus olhos às vésperas dos 30 anos):

- Minha primeira punheta foi pra você...

Vejam bem: ela poderia, e não sem razão, lançar o Dry Martini que bebia no meu focinho de inconveniente. Poderia, ainda, clamar por socorro diante daquele imbecil. Dar-me um tapa na cara, fazer o diabo. Nada disso.

À feição da Branca de Neve do inesquecível A HISTÓRIA QUE AS NOSSAS BABÁS NÃO CONTAVAM, Adele Fátima pôs a mão direita em minha nuca e levou-me até seu ombro (e que colo!, que colo!, que colo!). E disse (estou aqui escrevendo e ouço com uma nitidez impressionante sua voz):

- Ô, meu querido... Que bonitinho!

Eu ia lhes contar sobre as expressões que minha bisavó usava. Vai ter de ficar pra amanhã.

Choro de esguichar.

Até.